19 de fevereiro de 2014

O Barão de Lavos - capítulo 3 - secção 16

Entrou neste momento a curiosa da Doroteia — de saia de alpaca preta com folho na barra, véstia de briche, cabeçãozinho de renda, cuia enorme de retrós assentando nas costas, e toda impante de curiosidade velhaca no olho pequenino e redondo, na boca rasgada de orelha a orelha, crestada e fina no queixo em arpéu, no nariz esborrachado, — a perguntar:
— A senhora baronesa chamou?
— Eu não, mulher, — respondeu a baronesa, contrariada e enxugando a furto os olhos, secamente. — Até me pôs medo!
— Queira desculpar, pareceu-me... — arriscou, toda untuosa, a matreira, baixando o olhar e correndo os dedos da mão direita pela orla do avental, num afago de disfarce, enquanto debruçava o raio visual das pálpebras e aprumava o queixo e inflava o cogumelo das narinas, a apreender, a saborear o escândalo.

Como se fosse ficando:
— Vossemecê quer alguma coisa? — interrogou, passados instantes, a baronesa, toda paciente, agora nadando nesta voluptuosa lassidão que nos deixa o abalo de um perigo que passou.
— A senhora baronesa desculpará... mas… sim, a senhora bem sabe que eu sou sua amiga e que não me sei calar. E vai por isso não me sofre o interior vê-la assim tristinha, e não lhe dizer cá o que eu entendo...
— Sim, sim, obrigada... Eu não estou triste... Nem alegre... Aborrecida!... Vocês querem ver sempre a gente de carinha na água. — E pegou no livro, como para ler. A Doroteia porém não se deu por despedida. Continuando a escrutinar felinamente a baronesa, passou com a língua os lábios gretados e prosseguiu:
— Com um dia tão bonito… a senhora veja... Tudo por aí na paródia, a passear, a divertir-se, e a minha rica senhora aqui a ralar-se! — E, numa torpe bajulice: — Bem digo eu que não é como as outras!
— Lá vem vossemecê com a tolice do costume. Cale-se!
Ó senhora, isto não é ser má-língua, é a pura da verdade... Tenho servido em Lisboa, antes desta, seis casas… tudo gente casada... isto é, uns deles desconfio que não, porque nunca saíam de braço dado... Seis casas... Pois juro-lhe que em todas elas, quando os maridos saíam para a rua, cuida que as senhoras que se punham assim, metidas a um canto?... t’ó rola.... Iam mas era para a janela, fazer frente a outros.
— Não diga isso, mulher! — reprimendou de súbito, indignada, a baronesa, a cuja lisura de ânimo repugnava a calúnia. E quis ler; mas a maligna observação da criada interpôs-se... Na sua cabecita oca infiltrara rápido, como em areia, a babugem da alcoviteira. — Havia pois mulheres que... Ora! — E a inteireza da sua alma entrou em luta com a inconsistência do seu espírito. Bem fitavam os olhos a página; bem queria a vontade acorrentar o pensamento, que remoinhava, remoinhava em crepitações de bandeirola ao vento da fantasia.

A Doroteia, observando sempre a ama, tomou um leque de penas de cima de um móvel e exclamou:
— Que ventarola tão bonita!
— Bonita, — respondeu Elvira, muito breve, sem desfitar o livro, a afugentar.
— Minha senhora, deram-lha?
— Deram.

Parentesiou-se um silêncio. Fora, no largo, um malandro pregoava cautelas; da raiz do monte do Castelo vinha, amortecido na distância, um arranco de bigorna batida; longe a longe, um trem rodava. Passados minutos, soaram horas no escritório do barão. E logo a baronesa, que não conseguia ler e o silêncio molestava, agarrada ao pretexto:
— Olhe lá: que horas deram?
— Para não mentir à senhora — respondeu a criada salivando os beiços, — direi que não botei sentido… Que eu, a bem dizer, não me entendo com os relógios de Lisboa. Têm, dois ponteiros, não sei para quê... Lá na minha terra, o relógio da torre da igreja tem só um ponteiro, de lado a lado, e a gente governa-se com ele, e regula muito bem... Agora isto de dois é uma confusão.
— São precisos, já lhe tenho explicado: um marca as horas, e o outro os minutos.
— Não me entra cá… Endróminas... — E voltando à carga: — Mas que dia tão lindo!

Agora a baronesa, ainda a seu pesar alheada da leitura, fatigada, exasperada do esforço de uma luta impotente, encarou numa pontinha de cólera a causa do seu desassossego e ordenou:
— Não tem que fazer lá dentro?... Não preciso de vossemecê aqui.

Um despeito rancoroso fuzilou nos olhos da megera, que resmoneou, humedecendo as ravinas dos lábios: — És como as mais!... — E saiu de olho de través e cabeça baixa, com a ponta da cuia retesada do muito cabelo, erguida em curva sobre o occiput, a modo de uma grande figa.

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